terça-feira, 27 de maio de 2025

Discussão


Não basta ser um escritor fracassado, ainda tenho que aturar as homéricas discussões do casal que reside no quatrocentos e dois.

Não há um horário definido para o início do bate-boca. Porém, azarado que sou, a sinfonia de palavrões e insultos geralmente inicia no exato instante em que eu estou prestes a digitar algum primeiro parágrafo.

Normalmente a gritaria dura cinco, no máximo, dez minutos. A discussão acaba sempre quando um dos lados profere o maior impropério de todos, aquela ofensa matadora, capaz de extinguir todas as palavras e deixar apenas o silêncio preenchendo o vazio.

Recentemente, os desgraçados resolveram brigar justamente quando o meu protagonista iria proferir um emocionante discurso sobre o câncer no reto.

Os meus dedos simplesmente travaram sobre o teclado do notebook. As palavras não fluíam. Era impossível raciocinar quando, no apartamento, ao lado, uma esposa gritava “você é corno desgraçado” e o marido respondia com “sua cadela suja”.

Foram dez minutos de gritaria enquanto eu, solitário no meu quarto, lutava contra a página em branco.
A briga apenas acabou quando o marido proferiu o insulto definitivo, o golpe de misericórdia.

- Pelo menos eu não fiz o "L". - Ele gritou.

E eis que o silêncio abençoado surgiu. O único ruído, depois disso, era o som dos meus dedos digitando o meu vindouro fracasso literário.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Mentiras sinceras

 
O Fernando Pessoa já dizia que o poeta é um fingidor que deveras sente. O Stephen King, certa feita, afirmou que bons escritores sabem mentir. Eu, escritor ruim, sou um mentiroso pior ainda.  


Na minha mais recente entrevista de emprego, a moça contratante proferiu a pergunta clássica:
- Onde você se vê daqui a cinco anos?
 

Eu, me esforçando para mentir, apenas vomitei a verdade:
- Me vejo tentando finalizar a escrita de um épico de espada e feitiçaria que mal consegue duas estrelas de avaliação na Amazon.
 

Obviamente não consegui a vaga.
 

Queria eu ter a habilidade do meu vizinho, o Robercleison. O cara domina como poucos a nobre arte de dizer mentiras sinceras.
 

Dia desses, ouvi a discussão dele com uma guria.
- Porra, caralho, você falou para mim que trabalhava no ramo do petróleo! - Ela berrava enfezada.
- Sim… Eu sou frentista. - Ele respondia.



domingo, 25 de maio de 2025

Escuridão

 O Rafinha, sobrinho da Cleide, tem seis anos.

- Aquele desgraçadinho tem medo do escuro. Isso é normal, né? - A Cleide perguntou para mim.

Respondi que isso era normal. Até completei que eu, nessa idade, também nutria um certo medo do escuro. Apenas não disse que eu imaginava o escuro como o lar de criaturas lovecraftianas porque já sou considerado estranho pelos vizinhos. Falando isso, aí é que eles terão certeza.

- O medo do escuro, por incrível que pareça, poderá até estimular a criatividade do guri. - Eu disse. Apenas não concluí dizendo que esse foi um dos motivos que me levou para a literatura para não preocupar a coitada.

- Vá que o infante enverede para esse caminho de choro e ranger de dentes, o atalho mais curto para a pobreza. - Eu pensei lembrando de mim, que já não temo mais o escuro...