segunda-feira, 2 de junho de 2025

Isso é um assalto!

Numa noite dessas, estava eu no ponto de ônibus. Naquele horário, os únicos seres ao meu lado eram um cachorro revirando uma lata de lixo e mendigo adormecido, quiçá morto, vá saber…

Nas minhas costas uma mochila abrigava o meu Acer. Um notebook idoso que eu só não o aposentava porque teria que vender um rim e alma para comprar outro.

- Passa a mochila prá cá, vagabundo. - Foi a voz que ouvi logo atrás de mim.
O assaltante, sorrateiro e silencioso como um câncer de próstata, encostou algo pontiagudo na minha cintura.

Gaguejando falei que eu não tinha dinheiro.
- Acabou, parça, passa a mochila pra cá. - Ele insistiu.

Eu repeti que eu não tinha dinheiro.
- Eu sou escritor. - Concluí.

Foi aí que o assaltante afastou o canivete de mim.
- Foda cara. Tu é escritor mesmo? - Ele questionou me encarando com um misto de constrangimento e tristeza, como quem olha o time do coração chafurdado na zona do rebaixamento.

Eu confirmei cabisbaixo.
- Porra, maninho, como tu foi fazer uma coisa dessas?

Eu disse que eram as más companhias. Era tudo culpa do Stephen King, do Tolkien, da Anne Rice, dessa turma…

Falei também que eu escrevi um livro e que dava para contar a quantidade de leitores nos dedos da mão direita do presidente.

O assaltante, comovido, me abraçou e ainda me deu algumas moedas para me ajudar.

No ônibus, refleti sobre a minha condição e decidi abandonar a carreira literária.
Infelizmente não consegui. O desejo de contar histórias é mais forte que eu. Cheguei em casa e escrevi algo que nunca fiz na vida.

Procurei um emprego?

Nada disso, escrevi uma história hot.



Link para a compra: https://tinyurl.com/3mfxddbw

domingo, 1 de junho de 2025

Relatos desastrosos - O meu mais recente fracasso literário

É verdade, nem sempre fui esse escritor avacalhado. Tentei trabalhar em diferentes segmentos profissionais. Já atuei como fabricante de bandeirinhas de festa junina, adestrador de guaxinins e instrutor de manuseio de raquetes para matar mosquito.

Certa feita, também trabalhei como um indivíduo que só servia para ser xingado em um escritório de contabilidade.

Na ocasião, a minha chefe, vendo que até a samambaia da sala tinha mais serventia que eu, me mandou preparar uma palestra sobre empadinhas.

- Fale tudo sobre o tema. - Ela ordenou.
Eu achei o tema deveras estranho. Contudo, como minha função era obedecer, fiz o que me foi solicitado.

Preparei uma série de slides sobre empadinhas. Falei sobre empadinha de frango, de guisado, vegana, empadinha para diabéticos e até empadinha para quem era de libra com ascendente em gêmeos.

No dia da apresentação, estava eu lá, na sala de reuniões, sendo fulminado por vários pares de olhos inquisidores, todos ansiosos para ver o que eu tinha para falar sobre empadinhas.

Logo no primeiro slide, quando abordei a origem das empadas na península Ibérica, minha chefe gritou:
- Que merda de porra é essa?
- Fiz o que a senhora mandou. Elaborei uma palestra sobre empadinhas. - Eu expliquei falando baixinho e cagado de medo.
- Empadinha é o caralho, eu falei empatia. Em-pa-ti-a. - Ela pronunciou. Cada sílaba soava como uma chibatada nos meus ouvidos.

Após tão desastroso evento, fui defenestrado da empresa e me tornei escritor. Um escritor lascado, óbvio.

Causos como esse eu registrei aqui, nesse livrinho, o Relatos Desastrosos, uma coletânea de três histórias que resumem o cotidiano de um desafortunado autor.

O livro, mais barato que uma empadinha, não vai mudar a sua vida, mas vai ajudar a tirar o meu nome do Serasa.



terça-feira, 27 de maio de 2025

Discussão


Não basta ser um escritor fracassado, ainda tenho que aturar as homéricas discussões do casal que reside no quatrocentos e dois.

Não há um horário definido para o início do bate-boca. Porém, azarado que sou, a sinfonia de palavrões e insultos geralmente inicia no exato instante em que eu estou prestes a digitar algum primeiro parágrafo.

Normalmente a gritaria dura cinco, no máximo, dez minutos. A discussão acaba sempre quando um dos lados profere o maior impropério de todos, aquela ofensa matadora, capaz de extinguir todas as palavras e deixar apenas o silêncio preenchendo o vazio.

Recentemente, os desgraçados resolveram brigar justamente quando o meu protagonista iria proferir um emocionante discurso sobre o câncer no reto.

Os meus dedos simplesmente travaram sobre o teclado do notebook. As palavras não fluíam. Era impossível raciocinar quando, no apartamento, ao lado, uma esposa gritava “você é corno desgraçado” e o marido respondia com “sua cadela suja”.

Foram dez minutos de gritaria enquanto eu, solitário no meu quarto, lutava contra a página em branco.
A briga apenas acabou quando o marido proferiu o insulto definitivo, o golpe de misericórdia.

- Pelo menos eu não fiz o "L". - Ele gritou.

E eis que o silêncio abençoado surgiu. O único ruído, depois disso, era o som dos meus dedos digitando o meu vindouro fracasso literário.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Mentiras sinceras

 
O Fernando Pessoa já dizia que o poeta é um fingidor que deveras sente. O Stephen King, certa feita, afirmou que bons escritores sabem mentir. Eu, escritor ruim, sou um mentiroso pior ainda.  


Na minha mais recente entrevista de emprego, a moça contratante proferiu a pergunta clássica:
- Onde você se vê daqui a cinco anos?
 

Eu, me esforçando para mentir, apenas vomitei a verdade:
- Me vejo tentando finalizar a escrita de um épico de espada e feitiçaria que mal consegue duas estrelas de avaliação na Amazon.
 

Obviamente não consegui a vaga.
 

Queria eu ter a habilidade do meu vizinho, o Robercleison. O cara domina como poucos a nobre arte de dizer mentiras sinceras.
 

Dia desses, ouvi a discussão dele com uma guria.
- Porra, caralho, você falou para mim que trabalhava no ramo do petróleo! - Ela berrava enfezada.
- Sim… Eu sou frentista. - Ele respondia.



domingo, 25 de maio de 2025

Escuridão

 O Rafinha, sobrinho da Cleide, tem seis anos.

- Aquele desgraçadinho tem medo do escuro. Isso é normal, né? - A Cleide perguntou para mim.

Respondi que isso era normal. Até completei que eu, nessa idade, também nutria um certo medo do escuro. Apenas não disse que eu imaginava o escuro como o lar de criaturas lovecraftianas porque já sou considerado estranho pelos vizinhos. Falando isso, aí é que eles terão certeza.

- O medo do escuro, por incrível que pareça, poderá até estimular a criatividade do guri. - Eu disse. Apenas não concluí dizendo que esse foi um dos motivos que me levou para a literatura para não preocupar a coitada.

- Vá que o infante enverede para esse caminho de choro e ranger de dentes, o atalho mais curto para a pobreza. - Eu pensei lembrando de mim, que já não temo mais o escuro...